Trovadorismo e Humanismo
Contexto sócio-histórico e características literáriasTrovador tocando lira. |
A produção poética trovadoresca se divide em dois grupos: poesia lírica, a qual se subdivide em cantiga de amor e cantiga de amigo, e poesia satírica, subdividida em cantiga de escárnio e cantiga de maldizer. Todas elas mantinham um vínculo intrínseco com a música, uma vez que eram feitas para que fossem cantadas com o acompanhamento de instrumentos. Vejamos, a seguir, cada um desses tipos de cantigas.
Produção Lírica
a) Cantiga de amor: nessa modalidade de cantiga, um eu-lírico masculino exprime o sofrimento causado pelo amor que ele nutre por uma dama inatingível, dirigindo-se a ela. A dama não corresponde aos apelos do eu-lírico por pertencer a uma classe social superior ou, mesmo, por ser casada. A impossibilidade de relacionamento torna a figura da mulher idealizada, pois resta ao eu-lírico apenas contemplá-la. O discurso do eu-lírico é caracterizado pelo amor cortês, que corresponde à “ideia de que o amor é, em si mesmo, fonte de valor, se não de virtude” (ROBL, 1980, p. 6). De acordo com as convenções do amor cortês, o trovador deveria manifestar o seu amor de forma controlada (mesura), por meio da vassalagem amorosa à dama, a qual ocupava posição superior (social e espiritualmente). Notem-se as seguintes
características do plano formal da cantiga de amor, apontadas por Moisés (2006): a) há uma
gradação progressiva da lamentação do eu-lírico entre as estrofes do poema; b) a tendência pelo
uso do estribilho, que é um verso repetido ao final de cada estrofe. A cantiga que apresenta
estribilho é chamada de refrão; a cantiga que não tem estribilho é chamada de cantiga de maestria.
b) Cantiga de amigo: nesse tipo de cantiga, um eu-lírico feminino, geralmente uma camponesa
ou outra figura de perfil social mais popular, exprime o sofrimento causado pelo fato de o seu
amado tê-la abandonado para ir à guerra ou para se relacionar com outra mulher. Diferentemente
da cantiga de amor, o eu-lírico feminino não dirige o seu discurso àquele que ama, mas a
mulheres próximas, como a mãe ou amigas, ou a elementos da natureza. Destacam-se duas
características da cantiga de amigo indicadas por Massaud Moisés (2006):
a) no plano temático, o amor representado é mais realista, sem a idealização da amada da cantiga de amor;
b) no plano formal, a cantiga de amigo tende a apresentar um traço mais narrativo do que a cantiga de amor. Ressalte-se que as cantigas de amor não eram compostas por mulheres, mas por trovadores que construíam uma voz feminina no poema.
Produção Satírica
a) Cantiga de escárnio: nesse tipo de cantiga, o eu do poema tece uma crítica a alguém ou
a um comportamento, num tom sarcástico mais comedido, indireto. Mesmo o nome do
alvo da sátira não é mencionado no poema.
b) Cantiga de maldizer: nessa modalidade de cantiga, o eu do poema faz uma crítica mais
direta e aberta a alguém, inclusive revelando o nome da pessoa atacada, ridicularizando-a.
Esse poema muitas vezes utiliza vocabulário de baixo calão.
O Trovadorismo também produziu novelas de cavalaria, como A demanda do Santo Graal, a qual trata da busca pelo Santo Graal, ou seja, o cálice sagrado, pelos Cavaleiros da távola Redonda do Rei Artur. Segundo Moisés (2006), não foram produzidas novelas de cavalaria originalmente portuguesas, mas versões adaptadas de obras em francês.
Humanismo
O período do Humanismo em Portugal corresponde, cronologicamente,
ao período entre a nomeação de Fernão Lopes (1380?-1460) como Guarda-Mor da Torre do Tombo, em 1418, e o regresso do poeta Sá de Miranda (1481-1558) ao seu país, em 1527, trazendo e divulgando tendências estéticas clássicas. O período coincide com o advento do mercantilismo e com o início das grandes navegações portuguesas.
Esse momento histórico, como o próprio nome sugere, foi marcado pelo antropocentrismo, ou seja, por uma visão de mundo que privilegia o homem e o coloca como centro do mundo, diferentemente do teocentrismo (Deus como centro do mundo) da Idade Média. Embora a religião ainda fosse vigorosa no período, a valorização do homem e da razão emergia como potências que, posteriormente, se intensificariam no Classicismo/Renascimento.
Da literatura desse período, destacam-se:
a) As crônicas historiográficas como as crônicas dotadas de aspectos literários de Fernão
Lopes sobre monarcas portugueses, que igualmente enfatizavam a massa popular, e as crônicas
de Gomes Eanes de Zurara (1410-1473 ou 1474), que também tratavam sobre reis e, pioneiramente, sobre a expansão marítima portuguesa.
b) A poesia palaciana, ou seja, a produção poética surgida nos palácios da corte. O conjunto
de temas representados nessa produção poética era bastante variado: feitos heroicos, sátira, religião e amor, que se vinculavam ao sofrimento, como no Trovadorismo, mas, diferentemente deste, não viam a mulher como um ser completamente idealizado. Dos aspectos formais da poesia palaciana, destaque-se, segundo Moisés (2006), a recorrência da redondilha maior (verso de sete sílabas poéticas) e da redondilha menor (verso de cinco sílabas poéticas).
Gil Vicente
Gil Vicente (1465 ou 1466 - entre 1536 e 1540) é considerado “o pai do teatro português”. Embora seja possível que já houvesse teatro em Portugal antes dele, não há registros documentais de outros dramaturgos anteriores a ele. Produziu vários autos pastoris (diálogos pastoris, bucólicos), autos de moralidade (peças que, por meio de alegorias, transmitiam um ensinamento de cunho moral e religioso) e farsas (peça com personagens caricatas, situação cotidiana, que satiriza a sociedade), como também poemas.
O teatro de Gil Vicente satiriza a sociedade da época e os seus vícios, como a corrupção, a imoralidade e a hipocrisia, atacando diretamente figuras típicas de diversos setores sociais, como o fidalgo, o agiota, o comerciante burguês e o clero degradado. Segundo Massaud Moisés, a sua obra moralista “põe em prática o lema do castigat ridendo mores (rindo, corrige os costumes), realizando o princípio de que a graça e o riso, provados pelo cômico baseado no ridículo e na caricatura, exercem
ação purificadora, educativa e purgadora de vícios e defeitos” (MOISÉS, 2006, p.
44). A essa perspectiva moralista se articula uma visão religiosa típica da Idade Média com uma crítica social na sua obra. Frise-se que essa perspectiva religiosa de Gil Vicente não significa que ele apoiasse a Igreja Católica. Muito pelo contrário, sua obra promove uma crítica acentuada à corrupção dos membros da Igreja da época, separando dos valores e crenças da fé cristã a instituição corrompida, justamente por causa de sua perspectiva moral.
Atividades
1. Leia as duas cantigas trovadorescas a seguir e responda: de qual tipo é cada uma dessas cantigas? Justifique com algum elemento do texto. A cantiga A é uma cantiga de amigo, pois ela aborda, tematicamente, a expressão do sofrimento de um eu-lírico feminino ante a ausência de seu amado. A cantiga B é uma cantiga de amor, porque revela a contemplação de um eu-lírico faz de uma dama inatingível. Observe-se que ambas as cantigas são cantigas de refrão, porque apresentam estribilho.
A) Ai eu coitada, como vivo em gram cuidado
Afonso X ou Sancho I
Ai eu coitada, como vivo em gram cuidado
por meu amigo que hei alongado;
muito me tarda
o meu amigo na Guarda.
Ai eu coitada, como vivo em gram desejo
por meu amigo que tarda e nom vejo
muito me tarda
o meu amigo na Guarda
Fonte: <http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=457&tr=4&pv=sim>. Acesso em: 15 maio 2015.
B) Ai senhor fremosa, por Deus
D. Dinis
Ai senhor fremosa! por Deus
e por quam boa vos El fez,
doede-vos algũa vez
de mim e destes olhos meus
que vos virom por mal de si,
quando vos virom, e por mi.
E porque vos fez Deus melhor
de quantas fez e mais valer,
querede-vos de mim doer
e destes meus olhos, senhor,
que vos virom por mal de si,
quando vos virom, e por mi.
E porque o al nom é rem,
senom o bem que vos Deus deu,
querede-vos doer do meu
mal e dos meus olhos, meu bem,
que vos virom por mal de si,
quando vos virom, e por mi.
Fonte: <http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=542&pv=sim>. Acesso em: 15 maio 2015.
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Leia o seguinte trecho do Auto da barca do inferno, de Gil Vicente, e responda
às questões 2 e 3.
SAPATEIRO Renegaria eu da festa
e da puta da barcagem!
Como poderá isso ser,
confessado e comungado?!...
DIABO Tu morreste excomungado:
Nom o quiseste dizer.
Esperavas de viver,
calaste dous mil enganos...
Tu roubaste bem trint’anos
o povo com teu mester.
Embarca, eramá pera ti,
que há já muito que t’espero!
SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero!
DIABO Que te pês, hás-de ir, si, si!
SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi,
nom me hão elas de prestar?
DIABO Ouvir missa, então roubar,
é caminho per’aqui.
Fonte: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000107.pdf>. Acesso em: 15 maio 2015.
2. O Auto da barca do inferno pertence ao gênero dramático, mas sua forma se aproxima da poesia. Aponte um aspecto formal do texto característico da poesia produzida durante o Humanismo que o trecho acima ilustra. Predominância de versos em redondilha maior.
3. No trecho acima, qual aspecto da sociedade é criticado/ironizado por meio da figura do sapateiro? Explique, demonstrando quais atitudes do sapateiro são representativas do aspecto criticado. A hipocrisia dos indivíduos que exercem práticas religiosas, mas não são honestos. O sapateiro praticou atos religiosos durante a sua vida (confessou, comungou e ia a missas), mas roubava o povo ao exercer o seu trabalho.
Sugestão de site público
CANTIGAS Medievais Galego-Portuguesas.
Disponível em:
https://cantigas.fcsh.unl.pt/index.asp
Esse site disponibiliza todas as cantigas medievais dos cancioneiros galego-portugueses, com glossário, lista de autores, manuscritos e cantigas musicadas.
Sugestão de filme
REI Arthur. Direção: Antoine Fuqua. Produção: Jerry Bruckheimer. Intérpretes: Clive Owen, Keira Knightley, Ioan Gruffudd e Stephen Dillane. Produzido por Jerry Bruckheimer Films; Touchstone Pictures. 2004. 1 DVD (126 min).
Referências
CANTIGAS medievais galego-portuguesas. Disponível em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt/index.asp>. Acesso em: 13 maio 2015.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 34. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
ROBL, Affonso. As cantigas d’escárnio e maldizer. Revista Letras, v. 29, p. 5-17, 1980.
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