quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Guimarães Rosa - Fita verde no cabelo


FITA VERDE NO CABELO - Nova velha estória de João Guimarães Rosa

Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo.
Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.
Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo. Então, ela, mesma, era quem se dizia: –“Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou”. A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são. E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vindo-lhe correndo, em pós. Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa. Vinha sobejamente.
Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela, toque, toque, bateu: — “Quem é?”.
                –“Sou eu…” — e Fita-Verde descansou a voz. — “Sou sua linda netinha, com cesto e pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou”.
Vai, a avó, difícil, disse: — “Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te abençoe”. Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou.
                A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo: — “Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo”. Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:
                — “Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!”
                — “É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta…” — a avó murmurou.
— “Vovozinha, mas que lábios, ai, tão roxeados!”
— “É porque não não vou nunca mais poder te beijar, minha neta…” — a avó suspirou.
                — “Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido?”
                — “É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha netinha…” — a avó ainda gemeu.
                Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez.
                Gritou: — “Vovozinha, eu tenho medo do Lobo…”
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.

1. Guimarães Rosa é conhecido por criar neologismos (palavras inventadas) cite os neologismos presentes neste conto e dê o significado de acordo com o contexto.
2. O conto reafirma ou transforma o conto original? De que forma?
3. Descreva o que significam na história:
a) a fita verde no cabelo
b) o pote e o cesto
c) o caminho encurtoso
d) os lenhadores
e) a vovozinha
f) o lobo
4. O conto recria a tradicional história de Chapeuzinho Vermelho, citando suas marcas mais conhecidas e refazendo seu sentido original. Distanciando-se, ainda, da história conhecida, o narrador faz questão de assinalar o caráter ficcional da narrativa.
Esse procedimento, de apontar a própria narrativa como produto da ficção, explicita-se na seguinte passagem:
a) "Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia."
b) "Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo."
c) "A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são."
d) "Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela, toque, toque, bateu:"
5. "Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço."
Pela leitura global do conto, é possível afirmar que essa passagem implica uma mudança para a personagem.
Essa mudança pode ser caracterizada como:
a) encontro com o passado e superação do medo do desconhecido
b) ruptura com um mundo de fantasia e aproximação com a realidade
c) supressão do ponto de vista infantil e afirmação de uma nova perspectiva
d) alteração da antiga ordem familiar e conhecimento do fenômeno da morte

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